Ela joga contra o preconceito
Júlia Melo compartilha histórias de superação e representa a comunidade LGBTQ no mundo gamer
Quando se fala na comunidade gamer, algumas pessoas imaginam que é um lugar onde acontece muita diversão e é livre de discriminações e preconceito. De fato, há muita diversão, porém, alguns streamers ainda são vítimas de LGBTQfobia. Às vezes, fazendo sua própria maquiagem e aplicando seu clássico batom preto, Dorypix inicia sua live de aproximadamente 10 horas. Quem chega e não conhece a história de sua outra face, não é capaz de imaginar os altos e baixos que vem passando ao longo da sua vida.
Júlia Melo, que é mulher transexual e ficou popularmente conhecida na internet como Dorypix, conta que tudo começou no seu nascimento: “Demorei 12 horas para vir ao mundo. Fiquei sem água e oxigenação nenhuma. Não era nem para estar aqui hoje”. Foi criada pela mãe e pela avó após ser abandonada aos dois anos de idade pelo pai, que tornou a ver após 20 anos. Durante a adolescência, tentou suicídio duas vezes, a primeira aos 12, por não aceitar sua identidade de gênero, e a segunda aos 16, após tentar reconhecer quem ela realmente era através da religião evangélica.
Desde pequena notou que havia algo de diferente em si e que ‘não pertencia a esse mundo’. Pegava o salto da mãe e desfilava pela casa, usava as maquiagens que ela vendia como revendedora O Boticário e ainda compartilhava com a avó os produtos que usava e eram aprovados. As duas sempre levavam na brincadeira e achavam a situação engraçada. Pouco tempo depois, ela decidiu abrir o jogo e contar para família que é uma mulher transexual e relata que precisou batalhar muito para receber apoio dentro de casa.
Aceitação e apoio familiar
Aos 17, deu um basta e decidiu se aceitar. “Não vou me mutilar, não vou tentar me matar e não vou me entregar. Tenho muito mais a oferecer viva do que morta”, falou a si própria. Júlia buscou força em sua mãe e na avó que, segundo ela, foram as pessoas que lhe ‘mostraram a vida’. Sua avó, inclusive, foi quem escolheu seu nome após ter trazido à tona que é uma mulher trans. Relembrou que quando alguém fala sobre infância, ela sempre diz: “Eu já nasci velha e pau para toda obra”. Motivo este por ter se negado a reconhecer sua verdadeira identidade quando mais nova.
Ao recordar o marcante reencontro com seu pai após 20 anos, que ocorreu somente quando seu avô paterno havia falecido, ela expressa: “Não foi como eu queria. Ele ficou assustado e só me olhava, não sabia nem o que falar”. Nesse dia, o pai foi ao seu encontro somente após ela ir até ele e cumprimentá-lo. Entre tantas mágoas e desavenças, ela comemora o fato de ter ganho uma irmã que considera ‘lendária’, companheira e genuína. “A Eliane é tudo na minha vida. Ela é tudo o que eu sou”, ressalta Júlia. Após o reencontro, ela conta que sua mãe recebeu uma mensagem de seu pai, onde dizia que ele tem somente ‘uma filha’, a matriarca fez questão de rebater e disse que ele teria que engolir o fato de ter duas, querendo ou não.
Foi muito julgada e criticada pelo tio materno, que após tomar conhecimento de que ela estava sendo reconhecida na internet, tentou retomar o contato e fazer as pazes. Após o falecimento da avó, ficou arrasada e decidiu não aceitar qualquer tipo de contato por parte desse tio porque, segundo ela, quando a avó precisou de assistência ele negou qualquer tipo de ajuda por brigas familiares, mesmo que na época tivesse condições financeiras para tal. “Sempre deixo claro nas minhas lives que nós LGBTQs somos a nossa própria família. Podemos criar novas e, por muitas vezes, os amigos são mais que família em muitas horas da vida”, conta.
A entrada na comunidade gamer
Pertencer ao mundo gamer trouxe muitas pessoas para sua vida, e com isso ela expressa que o que mais gosta de fazer hoje é stream de jogos. Quando mais nova, já experimentava o gostinho de transmitir partidas de League of Legends na Twitch; hoje, ela está de volta na plataforma e além de LoL, ela transmite partidas de jogos de sobrevivência, como Dead by Daylight, e de caça a espíritos sobrenaturais, como Phasmophobia. Júlia conta que a sua versão streamer a ajudou a desinibir quem ela realmente é: “A Dory veio junto com a minha transição para me trazer força, um poder de fala e representatividade”.
Sempre sonhou em se tornar uma streamer, mas infelizmente, seu computador não dava conta. Neste ano durante a quarentena, ela retomou o contato com um amigo para lá de especial, com quem tem uma relação de amizade há anos. Após ser questionada por ele se ainda tinha interesse em fazer live de jogos, se ofereceu para custear um novo equipamento. Desde então, ela encara essa nova fase com muito mais sabedoria e leva a sério seu trabalho, que promete continuar bombando e conquistando mais pessoas.
Em uma comunidade majoritariamente dominada por homens heterossexuais, brancos e cis, a representatividade LGBTQ+ se faz muito necessária e é muito bem-vinda. Júlia não esconde sua personalidade forte e diz que jamais se entregará ao preconceito ou qualquer discriminação que seja, inclusive menciona que já foi vítima dentro da plataforma em que atua: “Cada comentário ridículo e maldoso que já recebi no chat durante a live. Muitos dos comentários, às vezes, vêm do próprio membro que é gay, bi, etc. Que acha que pode falar o que tiver vontade por fazer parte da comunidade.”
Inspirações e expectativas para o futuro
Dentro da própria comunidade gamer, ela cita como sua inspiração a Wanessa Wolf, que é streamer pelo Facebook Gaming: “Uma ótima colega de trabalho e um exemplo de superação.” Mas, além de se inspirar na “velha Wolf”, ela vê muito de si em Dani Liu, que também é streamer e transexual: “Um exemplo de luta pra mim.” Emocionada ao falar da avó, ela diz que a tem como espelho e herdou muitas de suas características da mesma, seja como Júlia ou Dorypix. “O sentimento de dor nunca passa. Ela é tudo que eu tive, tenho e vou levar por toda minha vida. Não abro mão do meu sentimento de carinho por ela”, confessa.
Depois de muitas tentativas de ser calada, a expectativa de Júlia para o futuro é de coisas boas que, segundo ela, já estão acontecendo. Hoje, seu maior sonho é representar o meio LGBTQ+ da melhor forma possível. “Não quero ter só uma marca, mas sim fazer jus a ela. Não ser só uma inspiração, mas também uma forma de escudo para combater a LGBTQfobia”, finalizou.